Para homenagear Milton Gonçalves, decidimos fazer o caminho inverso à maioria dos registros que se debruçaram sobre sua inestimável biografia como ator. Aqui no IPCN, nós fomos por um caminho mais escurecido e cá entre nós, bem mais bonito. É através do depoimento de um ex-presidente do *Instituto de Pesquisas das Culturas Negras*, que encontramos relatos marcantes sobre a vida desse grande ator, mas que, antes de tudo, também foi um grande militante e pioneiro em muitas frentes do que hoje podemos chamar de Movimento Negro do Brasil. 

Os relatos que seguem estão presentes em depoimentos do Livro Histórias do Movimento Negro no Brasil: Depoimentos ao CPDOC, escrito por Verena Alberti, Amilcar Araujo Pereira, Pallas Editora, (2016), que é fruto de uma extensa pesquisa realizada entre 2003 e 2007 no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getulio Vargas. O objetivo desse apanhado era formar um banco de entrevistas com lideranças do movimento negro no Brasil, a partir das décadas de 70 e 80 em todas as regiões do país.

Amauri Mendes Pereira, ex-presidente do IPCN, e um dos fundadores de uma entidade que foi precursora e co-irmã do IPCN, a Sociedade de Intercâmbio Brasil-África (Sinba), em 1974 nos traz relatos valiosos para falar desse lado político do ator. “Primeiro nasce a Sinba e logo depois vem o IPCN, que a gente dizia que era a elite negra, os negros que queriam ficar na Zona Sul, em volta do Milton Gonçalves e do Jorge Coutinho, que eram atores já com um certo espaço – Milton Gonçalves já era ator da Globo – da Léa Garcia, do Zózimo Bulbul, esse pessoal que vinha do Teatro Experimental do Negro”, conclui Mendes. Ele diz que com a cisão do Sinba, alguns militantes vieram integrar o IPCN.  

No depoimento, Amauri ainda afirma que o Benedito Sérgio, também um dos sócios-fundadores, era compadre do Milton Gonçalves. Ele resolveu criar um Instituto de Pesquisas das Culturas Negras, no ano de *1975*, mais precisamente no *Dia 8 de Julho*.  Nesse momento, foi que o Milton integrou o grupo de sócio-fundadores do IPCN junto com os demais participantes. 

Nesse embalo, veio outro baluarte da nossa militância negra, o autal Mestre e Doutor Yedo Ferreira, que naquela ocasião foi indicado pela Sinba para ajudar na criação do Instituto de Pesquisas. “Mas também porque o Yedo tinha uma coisa que ninguém tinha: ele sabia fazer estatuto”, disse no depoimento. Esse era um grande diferencial na época, saber como registrar uma organização, com estatutos, regulamentos e atas. 

Yedo detém hoje um grande estudo e muitas pesquisas sobre os processos de reparação do povo negro no Brasil. O pesquisador é também fundador da *Organização pela Libertação do Povo Negro (OLPN)*, que atualmente é uma das únicas a atuar na *Frente Reparação Já*. E  assim, os nomes foram surgindo, *Yedo, Benedito, Milton, Lélia, Benedita* na construção daquele que hoje se tornou o atual IPCN.

Lá no livro da FGV também haverá muita roupa suja, um traço histórico na formação do MN, mas, que se tornam pequenas diante das conquistas e legados deixados por esses ancestrais. Sim, Milton Gonçalves agora é um ancestral do nosso povo preto.  

As reuniões e encontros para fundação do IPCN

Os encontros ocorriam inicialmente no antigo Teatro Opinião, com outros artistas e militantes, pensadores, que formaram a base do ativismo negro no Brasil. Entre eles, Yedo, Benedito Sérgio, Lélia Gonzales, Abdias, Benedita da Silva, Antônio Pitanga e tantos outros. 

“Em um sábado à tarde, estavam Milton Gonçalves, Jorge Coutinho, Léa Garcia e a Vera Manhães, que é mãe da Camila Pitanga.E no nosso meio deu um burburinho danado porque a Vera Manhães foi discriminada. Ela ia fazer a Gabriela, do Jorge Amado. A Gabriela era negra. Ela era uma atriz que, na época, era muito respeitada. Estava tudo certo para ela fazer o papel na Globo. Aí chamaram Sônia Braga, que teve que tomar quantidades de banhos de luz para escurecer um pouco a pele para entrar como negra na novela. Isso foi um escândalo na época, no meio negro. Não repercutiu muito na mídia, mas para nós foi um absurdo. Nós fomos lá prestar solidariedade”, disse Amauri. 

Esses foram alguns fragmentos retirados do livro *Histórias do Movimento Negro no Brasil*, que é rico em detalhes sobre a importância para militância de Milton para nós negros e negras. Milton em seus múltiplos ofícios: *ator, diretor, cantor, dublador, produtor, diretor cênico, escritor, dramaturgo, sindicalista, militante, ativista negro brasileiro, não tenham dúvida: foi um dos mais importantes atores negros desse país, quiça, de toda América Latina.    

Infância humilde de um menino mineiro do interior…

Milton Gonçalves nasceu em Monte Santo de Minas, no sudoeste de Minas Gerais, no dia 9 de dezembro de 1933, dedicou sua vida e carreira ao movimento negro e foi muito além da dramaturgia. Ocupou diversos cargos públicos, como a *Superintendência Regional da RadioBrás*, foi membro do *Conselho de Cultura do Estado do Rio de Janeiro*, do *Conselho de Artes do Paço Imperial do Rio de Janeiro*, *Sócio-fundador do IPCN* e membro do *Conselho Cultural da Fundação Palmares*. 

Em depoimentos registrados e colhidos pela escritora Elaine Pereira Rocha, no livro *“Milton Gonçalves: memórias histórias de um ator afro-brasileiro”*, Editora E-manuscrito(2019), o ator deixou relatos marcantes sobre a sua infância em Monte Santo e sua origem humilde no interior mineiro.

“Meus pais eram catadores de café. Literalmente catadores de café. Eu tenho na minha memória algumas imagens de quando eu era menino, de três, quatro, cinco anos de idade, em que meus pais mudaram para a capital São Paulo, em busca de uma melhoria evidentemente. Meu pai lá foi ser pedreiro, auxiliar de pedreiro, minha mãe obviamente, foi ser empregada doméstica, lavadeira de roupas. E eu me lembro que a gente andava pra cima e pra baixo”, relembrou o ator.

Em sua infância, o ator lembrava que não tinha referência de um papai Noel Negro. Recentemente, numa de suas últimas atuações na TV Globo, Milton teve a chance de interpretar um Papai Noel Negro. Hoje, a geração atual já pode ter essa representatividade. Foi no Especial de Natal, *“Juntos a Magia Acontece”*. Nesse episódio atuaram artistas como a *Gabriely Mota*, a atriz e cantora mirim, periférica da Comunidade do Manoel Corrêa, em Cabo Frio, Região dos Lagos do Estado do Rio de Janeiro.  Ela reside no mesmo local, onde recentemente ocorreu uma brutal intervenção  policial em meio uma batalha cultural de Rap, dentro da quadra da comunidade.

 

Fonte: Divulgação / TV Globo

Presidente negro do Brasil

Um dos grandes desejos do Milton era ver ser eleito um presidente Negro no Brasil, não pode realizar esse sonho na vida real, mas no cinema, sim. Ele foi presidente do Brasil, no longa metragem *Segurança Nacional (2010)*, onde ele interpretou o Ernesto Dantas.

“Me lembro andando de carro de boi. Me lembro caminhando com meu tio, por uma estrada de terra, e ele me pôs sentado em cima de um mourão de cerca, para eu espiar e dizer pra ele se vinha vindo alguém, porque ele ia roubar umas abóboras”, disse Milton em depoimentos para o livro biográfico.

Milton Gonçalves parte deixando um legado imensurável de ativismo, obras artísticas, novelas, séries, peças teatrais e filmes. Em toda sua vida, sempre buscou reivindicar melhores espaços para os negros dentro da arte brasileira. No IPCN, o ator criou e integrou o primeiro grupo de Artistas Negros do nosso InstitutoA nós todos do IPCN, ao Brasil e ao mundo, Milton deixa uma herança histórica de conquistas que jamais será esquecida. Uma dessas vitórias está na nossa ata de fundação, sua assinatura sócio-fundador.

Ansiamos que sua passagem para o Orun, seja plena, leve e serena. Lá certamente está repleto de ancestrais e baluartes como você, que dedicaram suas vidas à Luta e ao Combate ao Racismo, todos eles nos ensinaram, cada qual ao seu modo. E nos ensinam, como você Milton, nos ensinou, até os dias atuais. A seguir lutando e muito mais que lutar, é assumir a graça de ocupar os nossos espaços e entender que representatividade é uma importante arma contra o racismo estrutural.  

Milton, sua militância não foi em vão! O IPCN o reverencia! Axé! Agò! Mojubá! És e será sempre o grande baluarte negro da nossa cultura brasileira. Milton Gonçalves nos deixou em casa, na última segunda-feira (30), aos 88 anos de idade, em decorrência de sequelas de um AVC (acidente vascular cerebral) que sofreu em 2020. 


Fabio Nascimento e Thammy Carvalho
*ASCOM do IPCN*